sexta-feira, 9 de abril de 2010

critica da Flor de Nanã


Luis Fernando Ramos (Critica da peça)2006 Agazeta,Vitória.Es.

A Flor de Nanã: entre o teatro ritual e a performance
A encenação do Teatro Experimental Capixaba na quinta noite do Festival proporcionou ao público um encontro entre as raízes da arte teatral, o rito, e uma das formas mais contemporâneas da teatralidade, a performance. Com o espetáculo, o autor e encenador, César Huapaya, confirma a sua relevância no panorama do teatro capixaba e afirma-se como uma das referências nacionais no campo de investigação que explora as fronteiras entre o teatro e a antropologia.
O espetáculo ocupou plenamente o teatro Carlos Gomes, recebendo o público no saguão central ao som de atabaques, e conduzindo-o à platéia depois que as devidas licenças tinham sido evocadas aos orixás, divindades do Candomblé, para o início dos trabalhos. Conduzindo esse prólogo estavam os pais e mães de santo das principais casas de candomblé da cidade de Vitória, numa extraordinária vivência ecumênica em torno da arte teatral. Entre esses, como intermediário, estabelecendo a conexão entre a prática do candomblé e a formalização cênica proposta por Huapaya, o pai de santo e performer Rogério de Iansã. Ele vem atuando no âmbito do Teatro Experimental Capixaba há mais de 15 anos e é a figura emblemática desse raro encontro entre a tradição milenar da religião africana e a práticas performáticas contemporâneas.
A trama do espetáculo que se desenvolveu no palco, para contar a história e as peripécias lendárias do orixá Nanã-burukê, é tecida pelas batidas dos atabaques que soam ininterruptamente a partir das mãos ágeis de vários ogans. Como dramaturgos de um teatro físico, que se expressa através dos corpos e dos movimentos codificados dos orixás, eles definem a linha narrativa. Nana-burukê, a grande mãe que dá origem ao mundo e cujos elementos naturais são a lama e o lodo primordiais, irá apresentar-se em suas diversas facetas colhidas numa mitologia que remonta a dez mil anos atrás. Para encarná-la, emoldurada pelos pais e mães de santo, a atriz e performer Rosi Andrade irá apresentar uma longa e precisa seqüência de movimentos corporais, alternados com algumas poucas falas, O curioso nesse desempenho é que a dança e os gestos que se oferecem, se por um lado não deixam de representar uma forma de coreografia determinada pelo código gestual do candomblé, por outro tem a espontaneidade e a inventividade da performance, em que, mais do que a realização de partitura corporal por uma atriz vigorosa, ocorre o depoimento pessoal da artista e cidadã: Andrade atua na cidade de Vitória na organização de mulheres que sofrem maus tratos domésticos e sua luta, nesse sentido, se expressa ali na figura de Nana-burukê, a orixá que preside o matriarcado. Arte e vida se encontram e se atualizam nesse rito que é espetacular e nesse espetáculo que é ritual. Ou outros performers, Roberto Claudino, Suely Bispo, Margareth Maia e Carlos Lourenço também atuam tanto como entidades quanto com suas próprias identidades.
Reconhecidas as linhas mestras da encenação de César Huapaya, vale ainda, à guisa de diálogo, propor algumas questões que se apresentam a partir do espetáculo. É comum os estudiosos de teatro comentarem que as tentativas de trazer os ritos do candomblé e da umbanda para a cena são sempre menos expressivas e espetaculares que os próprios ritos realizados nos terreiros e casas dessas religiões de origem africana. De fato, como em qualquer rito religioso, a começar dos ditirambos dionisíacos que dão origem ao teatro na Grécia, quando se é praticante do rito e se está nele inserido a relação com o fenômeno não é distanciada, mas vivida. Não se assiste a algo que se deixa ver, o teatro, mas se está inserido na vivência ritual. A tragédia grega nasce, exatamente, quando se estabelece uma distância suficiente para que os mitos possam ser apreendidos como espetáculo, objetos reconhecíveis diante de sujeitos observadores.
Pois bem, no caso de Flor de Nanã, se há a representação de um mito, é impossível não reconhecer, até pela presença em cena de sacerdotes reais - e não de atores imitando sacerdotes - que não trate, também, da celebração de um rito. É certo que ele está deslocado de seu espaço tradicional, o terreiro, e exposto frontalmente à platéia em um “palco italiano”. Ao mesmo tempo, supondo que a platéia não seja de iniciados naquela religião, a mencionada dramaturgia tecida pelos toques do atabaque e pelos gestos dos performers não será imediatamente assimilada, permanecendo como uma referência distante e indecifrável. Pode-se argumentar que, para além de qualquer compreensão, o que está em jogo são fluxos energéticos que atuam sobre os espectadores, não importando que eles assimilem os conteúdos narrativos. Mas, mesmo assim, a suposta fruição está seriamente comprometida para os não iniciados.
Essas especulações sugerem, por exemplo, que há uma tensão permanente nessa dialética entre o teatro e a religião, ou entre a performance e as práticas rituais. Talvez, a melhor forma de enfrentar as contradições inevitáveis nessa transposição do rito para a cena seja potencializar essa tensão, explorando-a teatralmente, mas sem deixar de buscar a intensidade do rito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário